O homem que perdeu a mulher, a única filha e a cunhada que comeram um bolo envenenado na véspera do Natal do ano passado em Torres, no Litoral Norte do RS, tenta retomar a rotina com apoio dos amigos e do que restou da família.
João Joaquim dos Anjos, de 70 anos, foi o único a não comer a sobremesa da ceia e agora encontra no neto, de apenas 10 anos, a força para seguir em frente.
A suspeita de ter envenenado o bolo é Deise Moura dos Anjos. De acordo com a Polícia Civil, ela é também suspeita de ter envenenado Paulo Luiz dos Anjos, irmão de João, em setembro. Deise foi encontrada morta dentro da Penitenciária Estadual Feminina de Guaíba, em 13 de fevereiro. A suspeita é de suicídio.
Após a morte dos quatro familiares, a maior preocupação de João tem sido com o bem-estar do neto de 10 anos. O menino também comeu o bolo envenenado e sobreviveu. O avô, no entanto teme os efeitos do arsênio, substância tóxica encontrada no bolo, além da saúde psicológica da criança daqui para frente.
“Meu neto é tudo que tenho. Ele dá força para a gente e parece um adulto, mas, às vezes, a saudade aperta, porque é uma criança”, conta.
“Esses dias ele ficou deitado vendo TV comigo e começou a chorar. Perguntei o que que estava acontecendo e ele disse: ‘saudade da minha mãe’. Isso aí esmorece o cara. Fiquei um tempão conversando com ele, peguei um guaranazinho, ele tomou, se acalmou e disse: ‘te amo, vô’. Aquilo foi tudo. Se eu não tivesse ele, eu não sei se estaria aqui”, desabafa João.
De acordo com Cassyus Pontes, advogado que representou Deise durante o processo, em depoimento antes da conclusão do inquérito, a suspeita afirmava “que jamais colocou na farinha, que jamais usou no suco” o veneno encontrado pela perícia. “São questionamentos que vão ficar eternamente. E nenhuma investigação, nenhuma decisão, nesse momento, vão mudar essa realidade”, afirma o advogado.
“Não tinha terminado meu cafezinho”
João era casado com Neuza Denize Silva dos Anjos, pai de Tatiana Denize Silva dos Anjos e cunhado de Maida Berenice Flores da Silva. As três morreram após comer o bolo. O cunhado Jeferson Luiz Moraes, a outra cunhada, Zeli Teresinha Silva Anjos, e o neto também comeram o doce. Eles chegaram a ser hospitalizados, mas receberam alta.
Foi João quem fez as primeiras ligações por socorro e foi até o Corpo de Bombeiros pedir atendimento médico à família. Ele chegou a ligar para Serviço Móvel de Urgência (Samu), que exigiu o endereço exato de onde estava. Desesperado, João não conseguiu responder a todas as perguntas e saiu a pé, correndo em busca de ajuda.
“Eu não tinha terminado meu cafezinho. Cinco minutos. No momento que eles começaram a comer, já começaram a sentir aquele queimor. A Neusa não comeu uma fatia. Foi só um pedacinho que levou ela à morte”, conta.
Família unida foi despedaçada
No dia 3 de setembro, antes da tragédia do bolo, João também perdeu o irmão e melhor amigo, Paulo Luiz dos Anjos. A causa, à época, foi informada como intoxicação alimentar. Em janeiro deste ano, o corpo de Paulo foi exumado. Exames comprovaram a presença de arsênio no organismo. Ele havia tomado um leite em pó contaminado pela substância.
“Nunca me mudei daqui. O Paulo (morava) ali no outro lado da rua. Onde um estava, o outro ia também. Se tinha um serviço para fazer, nós estávamos juntos” conta João
Primeiro foi Paulo que namorou com Zeli. Foi assim que João conheceu a irmã dela, Neuza. Em pouco tempo, a família estava ainda mais conectada, já que dois irmãos casaram com duas irmãs. Cada casal teve um filho e um neto.
“Sempre brincávamos. Eu dizia: ‘eu tenho a guria que tu não teve’, que era a Tati, e ele o guri que eu não tive, o Diego. Então, nós trocávamos, quando eu queria um guri, eu pegava o dele, quando ele queria uma guria, eu pegava a minha. Depois chegaram os netos, um para cada um.”
A irmã de Paulo e João, Regina dos Anjos da Silva, de 66 anos, não participou da ceia. Ela mora na residência ao lado e lembra da afinidade familiar e das vezes que saía à janela e ouvia as risadas dos parentes reunidos:
“Era a coisa mais linda de se ver, era um lugar com vida. Lá de casa só via as cabecinhas. O João não tomava chimarrão, mas era ele quem fazia. Às vezes, o Paulo até vinha também. Era sagrado, todos os dias. Aí agora, esse terreno não tem mais vida”, diz.