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Corrupção em Canoinhas: uma ferida aberta

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Para a população de Canoinhas esse escândalo é mais do que um simples processo judicial. É uma traição.

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A recente sentença publicada pelo Poder Judiciário, condenando o ex-vice-prefeito de Canoinhas, Renato Pike, e o ex-prefeito, Beto Passos, por liderarem um audacioso esquema de corrupção na cidade, expôs uma ferida que estava longe de ser superficial.

O detalhado documento de 86 páginas revela o funcionamento sombrio de uma organização criminosa que, instalada no coração da Prefeitura, desviava recursos públicos em benefício próprio, enquanto os cidadãos ficavam à mercê da má gestão.

O que agrava ainda mais a indignação da população é o fato de que, mesmo após a condenação, ambos poderão recorrer da sentença em liberdade.

Embora essa prerrogativa seja permitida pela lei brasileira, para muitos isso soa como um desaforo — como se, apesar de todas as provas e do veredito judicial, os responsáveis ainda pudessem escapar das consequências. Quiça, não irão.

O esquema criminoso: Uma rota de desvios

De acordo com os autos, Renato Pike comandava a organização criminosa, utilizando sua posição de vice-prefeito para orquestrar todo o esquema. Beto Passos, por sua vez, como prefeito, apoiava a operação e também se beneficiava das vantagens indevidas. A rede envolvia não só políticos, mas também agentes públicos e empresários. Uma verdadeira máquina de corrupção, onde as propinas fluíam sem obstáculos.

Os detalhes revelados na sentença são alarmantes. Documentos, relatórios e depoimentos comprovam que as propinas eram pagas em espécie para evitar rastreamento bancário.

O uso de celulares guardados na geladeira durante as reuniões era uma tática para evitar gravações, mostrando o nível de cautela com que os réus operavam.

As obras públicas, que deveriam trazer benefícios para Canoinhas, foram sistematicamente comprometidas. Um dos envolvidos chegou a declarar que chegou ao ponto de ter que escolher entre pagar a propina ou continuar as obras (faltava dinheiro), uma escolha que naturalmente prejudicava o andamento dos projetos. A corrupção, portanto, não foi apenas um ato isolado de desvio de dinheiro, mas um golpe diretamente no desenvolvimento da cidade.

As provas: Um mar de irregularidades

O volume de provas reunidas pela investigação não deixa dúvidas quanto à autoria dos crimes. O juiz responsável pelo caso, Eduardo Veiga Vidal, expôs com clareza o papel de cada envolvido no esquema.

Renato Pike, apontado como o mentor intelectual, coordenava as ações de seus subordinados com frieza e precisão. As vantagens indevidas que fluíam para ele e Beto Passos não teriam sido possíveis sem a colaboração de outros agentes, como o empresário Chrystian Mokva e ex-servidor público, Diogo Seidel, que desempenhavam um papel fundamental na articulação dos pagamentos de propina.

A sentença também traz à tona o ambiente de intimidação criado pelos acusados. Depoimentos indicam que sutis ameaças faziam parte do repertório para silenciar possíveis denunciantes. A rotina na prisão também foi mencionada, com os réus demonstrando medo de que outros presos descobrissem sua condição de colaboradores premiados, o que os tornaria alvos no presídio.

A participação de Beto Passos: Tentativa de minimizar o crime

Embora Beto Passos tenha tentado, através de sua defesa, minimizar sua participação no esquema, alegando ser um mero “instrumento” dos acontecimentos, o juiz rejeitou essa tese.

A sentença foi contundente ao afirmar que, sendo prefeito, ele tinha plena consciência do que ocorria sob sua gestão e, além disso, se beneficiava diretamente das propinas. A defesa tentou argumentar que Passos não tinha grandes poderes de influência nos crimes, mas a verdade é que ele foi um dos principais beneficiados, sendo inconcebível que estivesse alheio aos fatos.

Renato Pike, por sua vez, também teve sua defesa rejeitada. Ele tentou, sem sucesso, anular a homologação da colaboração premiada, argumentando que um dos colaboradores não teria provas concretas sobre as entregas de propina. Contudo, o juiz enfatizou que o próprio caráter clandestino dessas transações — com dinheiro sendo repassado em espécie para evitar rastreamentos — era parte do modus operandi da organização criminosa.

A Justiça funciona, mas com limites

É compreensível que muitos cidadãos estejam insatisfeitos com o fato de que os réus poderão recorrer em liberdade. Afinal, trata-se de uma organização criminosa que operava dentro da prefeitura, a mesma instituição que deveria zelar pelo bem público. Mas essa é uma das características do sistema jurídico brasileiro: a presunção de inocência se mantém até o trânsito em julgado da sentença.

Para a população de Canoinhas, contudo, esse escândalo é mais do que um simples processo judicial. É uma traição. Os eleitores confiaram o futuro da cidade a esses líderes, que usaram seu poder para enriquecer às custas do coletivo.

A sentença pode trazer algum alívio, ao expor os culpados e suas práticas, mas a sensação de que eles ainda estão fora das grades deixa um gosto amargo.

O esquema de corrupção revelado em Canoinhas é um retrato fiel de como a política pode ser pervertida quando não há ética e fiscalização rigorosa. Os valores desviados, as obras públicas prejudicadas, as ameaças veladas — tudo isso faz parte de uma triste realidade que assola muitas cidades brasileiras.

A decisão judicial foi um passo importante, mas ainda resta muito a ser feito para que a justiça seja plena.

Como cidadã e como jornalista, acreditem, é doloroso expor essa realidade. Mas a imprensa tem o dever de levar ao conhecimento público o que está aconteceu nos bastidores do poder. A corrupção não é um crime sem vítimas — pelo contrário, ela destrói comunidades inteiras, alimenta a desigualdade e corrói a confiança nas instituições.