O resgate dos sobreviventes de um dos acidentes aéreos mais famosos da América Latina completa 50 anos nesta quinta-feira (22). O grupo foi resgatado após mais de 2 meses nas montanhas, enfrentando temperaturas de 30ºC abaixo de zero.
Era sexta-feira, 13 de outubro de 1972, quando o turboélice Fairchild que levava jovens uruguaios jogadores de rúgbi para uma partida no Chile mergulhou violentamente no Valle de Las Lágrimas, a 4 mil metros de altitude, nas entranhas da Cordilheira dos Andes.
A viagem entre Montevidéu, no Uruguai, e Santiago do Chile deveria levar três horas. Durou 72 dias — o resgate só chegou em 22 de dezembro de 1972, há exatos 50 anos. Mais do que fome, frio e sede, o mais difícil era a incerteza de saber se estariam vivos no dia seguinte. Dos 45 passageiros a bordo, apenas 16 sobreviveram.

Deixados na neve, depois de ouvirem pelo rádio que as buscas tinham sido suspensas, dez dias após o acidente, aqueles jovens cheios de vontade de viver fizeram de tudo para sair dali. Nem que para isso tivessem que se alimentar com nacos de carne dos companheiros mortos.
O início do martírio
Antes de seguir para o Chile, o turboélice bimotor fretado da Força Aérea do Uruguai teve que fazer uma parada em Mendoza por conta do mau humor do clima andino, forçando o time de rúgbi a um pernoite não previsto em solo argentino.
No dia seguinte, a situação climática não era diferente, mas a última perna da viagem foi autorizada mesmo assim. Menos de uma hora depois, a aeronave entrou “num poço de vácuo”, perdeu velocidade e, ao se chocar com montanhas pontiagudas, partiu-se em duas.
Logo após o acidente, os então 29 sobreviventes dividiram um espaço de 6,5 metros de comprimento por três de largura no interior da fuselagem.
Nos primeiros dias, eles chegaram a escutar ruídos de motores e até puderam ver pequenas aeronaves sobrevoando o local do acidente. O cansaço, a confusão mental e os ventos ruidosos enganavam as esperanças. Apesar da comemoração precipitada, aquele era só o começo.
As duas primeiras mortes aconteceram dois dias depois da queda. Outros oito passageiros morreram em uma avalanche no final do primeiro mês de espera.
A cada tentativa de transpor uma montanha, durante as diversas buscas por ajuda, os sobreviventes do acidente de 1972 se viam diante de um infinito tapete nevado.
Do lado de fora, as temperaturas chegavam a -30 °C. Dentro da fuselagem, os sobreviventes cochilavam ou dormiam abraçados, em intervalos curtos para evitar o próprio congelamento.
Infecções viraram rotina e um dos feridos chegou a ser operado com uma lâmina de barbear pelo então estudante de Medicina Roberto Canessa.
A pouca comida disponível, que se resumia a conservas, bolachas e chocolates, era triturada na boca de alguns para alimentar os que tinham os “dentes afrouxados” pelo escorbuto (falta de vitamina C no corpo). Pastas de dente foram servidas como sobremesa.
O (polêmico) oitavo dia
Embora cogitada em silêncio, a ideia de se alimentar dos passageiros mortos demoraria alguns dias. Era só uma questão de tempo (e de fome).
No oitavo dia, antes que os Andes os tragassem de vez, os estudantes fizeram os primeiros cortes nos corpos com cacos de vidros na pele endurecida pelo gelo.
Para evitar a traumática possibilidade de se alimentarem de algum parente ou conhecido, os corpos colocados do lado de fora do avião não eram identificados.
Por um tempo, a decisão dos sobreviventes foi uma polêmica explorada pelos meios de comunicação da época.
Na edição de 30 de dezembro de 1972, a Folha de S.Paulo publicou uma matéria de meia página sobre os recentes depoimentos que os sobreviventes tinham dado em uma coletiva em Montevidéu com mais de 100 jornalistas de todo o mundo.
“Se Jesus, na última Ceia, repartiu seu corpo e seu Sangue com todos os apóstolos, estava dando-nos a entender que deveríamos fazer o mesmo. Isso foi uma comunhão íntima, entre todos nós, foi o que nos ajudou a subsistir”, declarou Alfredo Delgado Salaberry na época.
Cartas de despedida
Para ajudar a ocupar a mente nos dias de neve pesada que os impedia de deixar o avião, lápis e pedaços de papel encontrados foram usados para que os sobreviventes pudessem escrever mensagens para seus familiares.
“Quando chegou a minha vez, fiquei petrificado e não consegui. Decidi que não ia escrever porque se eu escrevesse seria como se eu estivesse me despedindo”, conta Gustavo Zerbino.
Último a ser tirado dos Andes, no segundo dia de resgate, ele se incumbiu de levar uma a uma, aos familiares que não puderam ter seus filhos de volta, as cartas de seus companheiros — como a que Gustavo, emocionado, leu durante a entrevista a Nossa. Veja abaixo um trecho:
Do mais profundo do meu ser, pedi a Deus que esse dia não chegasse, mas chegou e temos que aceitar com fé. E se eu puder ajudar os amigos com meu corpo, eu o farei com muita alegria”.
Gustavo Nicolich, em carta que escreveu para a mãe antes de ficar para sempre nos Andes
Enterrados vivos
Naquele cenário que cheirava a morte, a vida era a única opção. Mas daí chegou o dia 29 de outubro.
Era um domingo quando uma avalanche atingiu o pouco que sobrara de vida entre os destroços. Um “acidente dentro do acidente”, como relata Fernando Parrado em “A Sociedade da Neve”.
Debaixo de cerca de um metro de altura de neve, os passageiros ficaram presos por três dias. Uma das primeiras providências foi começar a cavar para resgatar os soterrados (vivos ou mortos). Para evitar o congelamento de membros paralisados, alguns chegaram a urinar sobre as mãos para recobrar os movimentos.
Menos de um mês depois do primeiro acidente, os sobreviventes nasciam pela segunda vez e começavam a se agitar para organizar a primeira expedição de busca de socorro liderada por três deles. Depois da avalanche, o saldo foi de outros oito mortos.
‘Venho de um avião que caiu nas montanhas’
Após diversas tentativas de expedições, em dezembro de 1972, os sobreviventes montaram uma comitiva com três dos jovens com melhor preparo físico (e psicológico) para, mais uma vez, tentarem ajuda.
Roberto Canessa e Fernando Parrado, acompanhados de Antonio Vizintin, que regressaria aos destroços antes do fim da caminhada, percorreram cerca de 60 quilômetros durante exigentes 10 dias.
A partir do sétimo dia de trilha, começaram a encontrar um cenário que já não era apenas neve. Rochas, barulho de queda d’água e até uma lagartixa, o primeiro ser vivo que viam, começavam a indicar que o fim poderia estar no início.
No décimo dia de caminhada, a dupla encontrou Sergio Catalán do outro lado de um rio, em Los Maitenes, na província de Colchagua, no Chile, mas o som da água impediu que o tropeiro ouvisse o pedido de socorro.
Sergio então amarrou um papel e um lápis em um barbante preso a uma pedra e lançou-os em direção à outra margem do rio. Fernando escreveu a mensagem salvadora que dizia:
“Venho de um avião que caiu nas montanhas. Sou uruguaio. Estamos caminhando há cerca de dez dias. Outros catorze permanecem no avião. Também estão feridos. Não têm o que comer e não podem sair nem andar. Por favor, venha nos buscar”
O resgate de helicóptero, feito em dois dias por conta das condições climáticas, começou no dia 22 de dezembro.
Em memória dos amigos
Em janeiro deste ano, o sobrevivente Gustavo Zerbino voltou ao Valle de las Lágrimas com a esposa e os filhos, que têm idades entre 15 e 34 anos.

“Levei água e terra de Mendoza para os mortos e um padre rezou uma missa. Dormimos no mesmo lugar onde caiu o avião. Foi mágico”, descreve Zerbino, que voltou para deixar uma placa em memória aos 50 anos do acidente.
*Matéria publicada originalmente por Nossa Uol.
 
			



