Abuso e exploração sexual infantil: Três coisas que talvez você não saiba

Avatar photo
Artigo do Coordenador do Centro de Apoio Operacional da Infância, Juventude e Educação do MPSC, Promotor de Justiça Mateus Minuzzi Freire da Fontoura Gomes.

LEIA TAMBÉM

Você já parou para pensar no que realmente está por trás dos números, das campanhas e das manchetes sobre abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes? 

O dia 18 de maio marca o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Embora o tema seja cada vez mais discutido na sociedade, notei – ao longo de quase 10 anos em Promotorias de Justiça – que existem, pelo menos, três fatos sobre o tema que a maioria da população desconhece.  

Araceli Crespo tinha apenas oito anos quando foi sequestrada, drogada, estuprada e assassinada em 1973. O caso permanece impune até hoje e tornou-se símbolo da luta contra a violência sexual infantil no Brasil.

Talvez a primeira informação relevante seja a história por trás desta data. Remontamos ao trágico destino de Araceli Crespo em 18 de maio de 1973, em Vitória, no Espírito Santo.

Aos 8 anos, a pequena Araceli parou para brincar com um gato – e, depois, foi sequestrada, violentada sexualmente, assassinada e teve seu corpo desfigurado.

Passados 50 anos, os assassinos nunca foram identificados. O crime ficou impune. Mais do que uma data, portanto, o 18 de maio surge como um chamado à ação. Para que tragédias como essa não se repitam, a Justiça deve se lembrar da batalha diária contra a violência sexual infantil. 

Nesse contexto, entra o trabalho do Ministério Público. Ao tomar posse, toda Promotora e todo Promotor assume o compromisso de dar voz às vítimas que, por medo ou vergonha, estão em silêncio.

Ouvi-las, representá-las e protegê-las. Quando se trata de crime praticado, em grande parte, dentro de casa, o resgate de criança ou adolescente somente é possível quebrando barreiras. 

Talvez você se questione como é feita essa proteção. Nesse sentido, a segunda coisa que talvez você não saiba é que, hoje, a lei é muito mais rigorosa contra os agressores do que muitos imaginam.

Recordo-me de um caso que acompanhei no ano passado. A vítima criou a coragem para contar à mãe, aos 13 anos, sobre um abuso que sofria desde os 8 anos (o que ficou provado, inclusive, por vestígios biológicos nas roupas íntimas dela).

Além do réu responder ao processo preso, a pena da condenação chegou a quase 100 anos (devido ao número de crimes e aos diferentes modos de execução).

Em Santa Catarina, apenas em 2024, o Ministério Público apresentou 2.185 denúncias por estupro de vulnerável. Um aumento de 12% em relação ao ano anterior, segundo a Corregedoria-Geral do MPSC. 

O sistema de proteção também avançou. Atualmente, a lei garante medidas protetivas de urgência em favor de qualquer criança e adolescente vítima de violência, independente do sexo (e, sim, muitas vítimas de abuso sexual são do sexo masculino).

As medidas iniciam com aquelas mais tradicionais contra a pessoa suspeita do crime – com prazo de 24 horas para análise – como o afastamento do lar, a proibição de contato e a prisão preventiva.

Mas hoje, também, abrangem proteção individual à vítima, como acompanhamento psicólogo e o atendimento por equipe especializada. Rotineiramente, essa proteção também é solicitada por membros do Ministério Público. 

A terceira coisa que talvez você não saiba é que você, inclusive, pode fazer a diferença! Nos processos criminais, muitas vezes escutei a pergunta: “por que não contou antes?”.

Depois de conhecer a história das vítimas mais a fundo, percebi que a verdadeira questão era: “por que ninguém escutou antes?”.

Quando falamos de crianças e adolescente vítimas de abuso ou exploração sexual, quase sempre havia alguém que desconfiou de algo. Alguém que viu sinais. Alguém que poderia ter dito algo – e não disse. 

Esse artigo não busca apontar culpados, mas lembrar o poder de toda pessoa de fazer o bem.

Nos últimos anos, acompanhei diversas vítimas de abuso não só durante a ação penal, mas com medidas de proteção que duraram anos. Como Promotor de Justiça, posso garantir que poucas coisas são tão transformadoras quanto ver um menino ou menina liberto de um dia a dia de violência sexual. Volta o brilho nos olhos. A fala espontânea. O riso. 

Por isso, as denúncias são essenciais. Se você suspeita de algum caso, comunique as autoridades através do Disque 100, do Conselho Tutelar ou diretamente ao Ministério Público!

É uma pequena ação que pode libertar quem mais precisa – crianças e adolescentes que apenas aguardam a chance de sorrir e de, por pelo menos um dia, serem felizes de novo. 

Caso Araceli: Famílias influentes e interferências políticas marcaram o caso

O caso Araceli está marcado por elementos de violência brutal, silenciamento institucional e influência de elites locais. Apurações da época apontaram que os principais suspeitos pertenciam a famílias tradicionais do Espírito Santo e contaram com o apoio de redes de poder para evitar a condenação.

A atuação dessas redes de proteção ocorreu em pleno regime militar, num contexto de censura à imprensa, repressão política e omissão institucional.

O assassinato da menina e a condução do caso tornaram-se um símbolo de como o poder das elites, aliado à estrutura autoritária do Estado, impediu que o crime fosse devidamente apurado e punido.

A investigação foi marcada por omissões, troca de delegados, desaparecimento de provas e até assassinato de testemunhas.

Dois herdeiros de famílias poderosas do Espírito Santo, Dante de Barros Michelini e Paulo Constanteen Helal, foram acusados de drogar, estuprar e matar a menina. Além disso, o pai de um deles, Dante Brito Michelini, foi acusado de contribuir com o crime e usar sua influência para atrapalhar as investigações.

Todos se declaravam inocentes e, apesar de terem sido condenados no primeiro julgamento, foram inocentados após recurso.

A ausência de responsabilização transformou o caso em um emblema da impunidade seletiva no Brasil.