Em um tom de brincadeira, o governador de Santa Catarina, Jorginho Mello (PL), sugeriu aos seus colegas do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSD), e do Paraná, Ratinho Júnior (PSD), a separação da região Sul do Brasil.
A declaração foi feita na última quinta-feira (12), durante um evento em Curitiba promovido por uma entidade da construção civil.
Mello, em seu discurso, soltou a frase: “Daqui a pouco, se o negócio não funcionar muito bem lá para cima, nós passamos uma trena para o lado de cá e fazemos ‘o Sul é nosso país’, né?”.
A fala é uma clara alusão ao movimento separatista “O Sul é Meu País”, que há mais de três décadas defende a autonomia e a formação de uma nova nação na região.
Os três governadores dividiram o palco no evento, que reuniu representantes do setor da construção civil e autoridades estaduais. Embora a declaração tenha sido proferida em tom de humor, ela rapidamente se espalhou e gerou comentários nas redes sociais e na imprensa.
A fala trouxe à tona um tema antigo e recheado de contradições, na visão do pesquisador da Universidade Estadual de Londrina (UEL) Gabriel Pancera Aver, que estudou o movimento em seu mestrado em sociologia e aprofunda a investigação agora no doutorado.
“A fala do Jorginho Mello não leva em consideração, por exemplo, que uma catástrofe ambiental no Rio Grande do Sul como a do ano passado precisou obrigatoriamente do apoio do governo federal“, ele destaca.
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Em entrevista à BBC News Brasil, o pesquisador explica as origens do separatismo sulista, suas principais características e suas contradições. Confira, a seguir, em cinco pontos:
As origens
Iniciativas que buscam apartar o Sul do restante do Brasil remontam aos tempos do Império e da Primeira República.
Aver cita como exemplos a Revolução Farroupilha, no Rio Grande do Sul do século 19, e a Guerra do Contestado, em Santa Catarina e no Paraná, no início do século 20. Ambos conflitos que se opunham diretamente ao governo central.
Nesse sentido, ele destaca que, nesse período, não apenas o Sul, mas províncias de outras regiões entraram em rota de colisão com o Rio de Janeiro, na época a capital.
Houve, por exemplo, a Cabanagem, na então província do Grão Pará, e a Guerra de Canudos, no sertão da Bahia, ambas no século 19.
“O Brasil é unificado em cima de uma série de violências”, comenta o sociólogo, referindo-se à repressão aos movimentos que se opunham à centralização do poder naquela época.
“Um pouco [do separatismo] vem dessa lógica de como o federalismo brasileiro é construído, mas puxar isso para o século 21 com O Sul é Meu País é outra conversa”, ele acrescenta.
‘Somos sulistas’
O grupo surgiu em 1992, em uma época em que o país estava mergulhado em crise e o tema do separatismo na região ganhava novo fôlego com o aparecimento de diferentes movimentos, como o Pampa Livre e a tentativa de criação do Partido da República Farroupilha, que com o tempo arrefeceram.
O Sul é Meu País, por sua vez, sobreviveu às últimas décadas e tem ainda hoje um discurso centrado em um antagonismo forte em relação ao governo central, no caso, a Brasília.
A retórica é de que a região seria prejudicada pelo pacto federativo: contribui muito com impostos para os cofres do governo federal, mas recebe pouco em serviços públicos.
Não seria esse, contudo, o único fator que manteve a ideia de separatismo viva na região. Para o pesquisador, ainda que a influência do grupo oscile a depender do período, sua força vem do fato de ele abraçar a questão identitária.
“É um movimento que vai basear a separação muito mais no sentimento de ‘somos sulistas’ do que em um algo econômica e politicamente substancial”, avalia Aver.
As contradições
E justamente por isso, continua o sociólogo, o discurso do grupo é permeado por contrassensos.
Na análise de quase cem artigos de opinião de líderes do movimento, Aver identificou, por exemplo, que na construção da ideia do que seria “ser sulista” ora eles evocavam heranças guaranis, ora faziam referência a tradições europeias.
Reivindicam lideranças indígenas como Tiaraju e o cacique Guairacá como símbolos nacionais, ao mesmo tempo em que atribuem grande valor à herança cultural dos imigrantes europeus.
“O movimento acaba sendo contraditório porque ele é identitário, e a identidade em si é fluida, ela varia”, ele avalia.
Levando essa contradição para uma esfera mais mundana, ela se manifesta, por exemplo, em falas como a do governador de Santa Catarina.
“Quando diz ‘Se não der certo lá em cima a gente passa a trena e fica aqui embaixo’, ele parte do pressuposto que ‘aqui embaixo dá certo’, e não leva em consideração, por exemplo, que uma catástrofe ambiental no Rio Grande do Sul como a do ano passado precisou obrigatoriamente do apoio do governo federal”, afirma Aver.
Preconceito e xenofobia
A ideia do “aqui embaixo dá certo” expressa outro valor intrínseco ao separatismo do Sul, a de que haveria uma superioridade em relação ao restante do país.
O sociólogo avalia que, ainda que haja uma preocupação das lideranças do Sul é Meu País em rejeitar que seu discurso seja preconceituoso, ele com frequência resvala na xenofobia.
Isso acontece, ele exemplifica ,quando paulistas, nordestinos e outros migrantes internos são classificados como “estrangeiros” ou “invasores”.
“O discurso parte da premissa não de que o outro é ruim, mas de que eu sou bom”, completa Aver.
E dessa dualidade vem outra contradição, a conciliação da identidade de “sulista” com a de “brasileiro”. O que vem primeiro?
“Quem determina é o contexto”, opina o pesquisador.
“Se é pra falar de política social, porque se tem a ideia de que o Nordeste é quem usa e o Sul não — o que é uma falácia —, então ser sulista vem primeiro. Agora, se é uma catástrofe ambiental da qual o Sul não consegue se recuperar, aí somos todos brasileiros e façamos solidariedade”, conclui.